Uma saga que vem desde 2012 e, com a pandemia, pelo agravamento da situação econômica do país e o consequente aumento de pessoas endividadas, passou a ser uma pauta, além de necessária, urgente. Nasce a Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) que contém cinco artigos.
O art. 1º altera o Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 4º, 5º, 6º, 51, 54 e 104. O art. 2º acresce o §3º no art. 96 do Estatuto do Idoso. O art. 3º dispõe sobre o direito intertemporal. O art. 4º foi vetado e o art. 5º trata do início de vigência que é na data da publicação da lei, ou seja, no dia 02 de julho de 2021. A Lei 14.181/2021 é uma adaptação legislativa, um marco regulatório que a partir de 02 de julho passa a valer por meio das normas que foram acrescidas ou alteradas no CDC e no Estatuto do Idoso.
O texto considera superendividamento a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
A primeira análise a ser feita sobre o conceito de superendividamento é sobre o consumidor abarcado ser apenas a pessoa natural. A pessoa jurídica não foi enquadrada no conceito. Isso quer dizer que se a pessoa jurídica se encontrar superendividada não poderá buscar a proteção da nova lei. O foco da lei são os consumidores que compram produtos ou contratam créditos em instituições financeiras, mas, por algum motivo imprevisível e extraordinário em suas vidas, ficam impossibilitados de adimplir as parcelas. A pessoa jurídica pode ser considerada consumidora, conforme art. 2º do CDC, mas essa é mais uma situação em que ela não se enquadra.
Outro ponto importante do conceito trazido pela Lei do Superendividamento é a ‘boa-fé’. A boa-fé é um princípio basilar do direito do consumidor, segundo o qual as partes possuem o dever de agir com base em valores éticos e morais da sociedade. A boa-fé, como muitos pensam, não é só o fornecedor que tem que exercê-la e sim também o consumidor. O consumidor deve ser leal, honesto, reto com a outra parte quando está se relacionando juridicamente com ela. A Lei do Superendividamento deixa expresso que as regras não se aplicam às dívidas que tenham sido feitas por fraude ou má-fé, seja por meio de contratos assinados com a intenção de não realizar o pagamento ou pela compra de produtos e serviços considerados ‘de luxo’.
Outra análise a ser feita advinda do conceito de superendividamento é que as dívidas devem ser exigíveis e vincendas. As dívidas exigíveis são aquelas em que o pagamento pode ser pleiteado em juízo. As dívidas vincendas são aquelas que ainda irão vencer (exemplo: parcelamento de um carro em 48 meses. O comprador pagou 12 e há 36 parcelas que ainda vão vencer).
Por fim, tão importante quanto as características conceituais anteriores analisadas, é parte do texto que diz “sem comprometer seu mínimo existencial”. Como a legislação brasileira não trouxe o conceito de ‘mínimo existencial’ (norma aberta), cabe em cada caso em separado fazer a análise se aquela renda é a renda mínima para as necessidades básicas para a sobrevivência. O mínimo existencial corresponde a um mínimo de condições para que o cidadão possa exercer seus direitos fundamentais e tem relação direta com os direitos sociais previstos na CF/88. Dessa forma, estar-se-á a falar de um conteúdo mínimo de direitos que deve ser protegido visando consignar-se o suficiente para a manutenção da dignidade da pessoa humana. O mínimo existencial corresponde às condições materiais para uma vida digna. Os tribunais brasileiros ainda estão construindo o conceito de ‘mínimo existencial’, mas algumas decisões já foram dadas tomando como base 30%, ou seja, as parcelas não podem exceder o patamar de 30% do valor correspondente à remuneração do consumidor.
A Lei 14.181/2021, conforme comentado acima, fez alguns acréscimos ao CDC e o art. 4º é um deles. O art. 4º do CDC trata da Política Nacional das Relações de Consumo, ou seja, nesse dispositivo encontram-se alguns dos princípios aplicáveis às relações consumeristas. A Lei 14.181/2021 acrescentou os incisos IX e X. O inciso IX do art. 4º do CDC trata como princípio o “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” e o inciso X trata da “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor”.
A menção a ações voltadas à educação financeira era de se esperar, fazendo parte do âmbito preventivo da proteção buscada. Lembrando que a educação financeira tem por propósito auxiliar os consumidores na administração dos seus rendimentos, nas suas decisões de poupança e investimento, no seu consumo consciente e na prevenção de situações de fraude. Esse inciso IX do art.4º do CDC chama a atenção pela presença da educação ambiental. Pode-se dizer, diante disso, que o objetivo passa a ser mais amplo: a educação para um consumo consciente. Vale dizer, o ato de consumir é muito mais do que simplesmente adquirir um produto ou serviço. É muito mais do que uma ação individual. Somente com a soma das dimensões financeira e ambiente pode-se, ao menos minimamente, falar em consumo consciente. Assim, saúda-se a inclusão da educação ambiental no CDC, ainda mais como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo. Muito embora a ligação entre consumo e meio ambiente seja inegável, faz-se necessário positivá-la.
Quanto ao inciso X do art. 4º do CDC (acrescido pela Lei 14.181/2021) é importante analisar que o consumidor é a parte mais vulnerável na relação consumerista e por tal motivo merece proteção especial do Estado, tutela conferida pelo Código de Defesa do Consumidor. No entanto, com a massificação dos meios de produção e o aumento da oferta de produtos no mercado de consumo, o consumidor continua sendo desrespeitado pelos meios de publicidade apelativos e através de cláusulas abusivas, inseridas pelos fornecedores, propositalmente nos contratos de adesão. Neste sentido, o consumidor se vê obrigado a consumir produtos cada vez mais completos e repletos de tecnologia, com o propósito de se sentirem dentro de um status imposto pela sociedade. Esse consumo, na maioria das vezes desenfreado e inconsciente, gera ao consumidor parcelas e mais parcelas que somadas o impossibilitam de adimpli-las. Se o consumidor não consegue mais pagar as suas dívidas e passa a ter o seu direito de consumir enfraquecido, automaticamente ele é excluído socialmente.
O art. 5º do CDC traz os instrumento para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo e a Lei 14.181/2021 acrescentou dois incisos: VI e VII. O inciso VI dispõe: “instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural”. O inciso VII dispõe: “instituições de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento”. Nestes casos, tratam-se de desafios para efetividade da norma, que é a sua implementação na estrutura dos diversos órgãos do Poder Judiciário, da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de arranjos que promovam, especialmente, a mediação e negociação entre o consumidor superendividado e seus credores. O art. 104-C do CDC inclui a possibilidade de contar com a participação dos próprios fornecedores, estimulando e facilitando tais práticas quando se identifique nelas um meio eficiente para recuperação, no todo ou em parte, dos respectivos créditos.
O art. 6º do CDC que trata dos Direitos do Consumidor também sofreu acréscimo por meio da Lei 14.181/2021 em seus incisos XI, XII e XIII. Ao lado do já mencionado direito à preservação do mínimo existencial (inciso XII), também se reconhece a garanti de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas (inciso XI). Todos os itens citados no inciso são direitos subjetivos do consumidor reconhecidos. No que diz respeito à repactuação, o juiz poderá, a pedido do consumidor superendividado, iniciar processo de repactuação das dívidas com a presença de todos os credores. Na audiência, o consumidor poderá apresentar plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos para quitação, preservado o mínimo existencial. Se for fechado acordo com algum credor, o juiz validará o trato, que poderá ser exigido no cartório de protesto (eficácia de título executivo). Devem constar do plano itens como suspensão de ações judiciais em andamento e data a partir da qual o nome sairá do cadastro negativo. Não podem fazer parte dessa negociação as dívidas com garantia real, os financiamentos imobiliários os contratos de crédito rural e dívidas feitas sem a intenção de realizar o pagamento. Aproveitou o legislador também para especializar o direito à informação sobre preços, exigindo que seja prestada segundo unidade de medida, “tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso”. É norma que acrescenta ao já disposto no art. 6º, III, do CDC.
A Lei 14.181/2021 acrescentou dois incisos no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor que trata das Cláusulas Abusivas. O inciso XVII dispõe que são abusivas as cláusulas que “condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário. E o inciso XVIII dispõe as que “estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores”.
No primeiro inciso, trata-se de transparente reação do legislador a uma das tendências equivocadas da desjudicialização de conflitos que vem condicionando a proposição de ações pelos consumidores ao prévio registro da pretensão perante serviços governamentais ou não, de reclamações e a respectiva negativa do fornecedor. É muito comum o consumidor procurar o Procon de sua cidade e se deparar com a pergunta se todas as formas de solução de conflitos, inclusive com a negativa do fornecedor, já foram esgotadas. É também inconstitucional a imposição de um obstáculo ao exercício do direito fundamental de acesso à justiça.
A outra hipótese, do inciso XVIII, visa impedir que o consumidor que venha a purgar a mora ou recorrer à conciliação no caso de superendividamento, sofra prejuízo em relação aos serviços que tenha contratado, os quais deverão ser restabelecidos imediatamente, em sua integralidade.
Logo depois do Capítulo e Seção que trata ‘Dos Contratos de Adesão’, em seu art. 54-A, foi acrescido no Código de Defesa do Consumidor por meio da Lei 14.181/2021 um capítulo denominado ‘Da Prevenção e do Tratamento do Superendividamento’. Esse dispositivo juntamente com os seus incisos e parágrafos consigna o conceito legal de superendividamento, já mencionado anteriormente neste artigo, com seus elementos: subjetivos (pessoa natural e de boa-fé); elemento objetivo (dívidas decorrentes da relação de consumo, não abrangendo, portanto, as que tenham outra natureza, como as dívidas tributárias, as decorrentes de relações familiares, entre outras) e elemento teleológico (impossibilidade de pagamento se dá em vista do comprometimento do mínimo existencial, ou seja, a dívida que possa comprometer a subsistência do consumidor).
Em análise ao art.54-B do CDC, entende-se que na oferta do crédito, acrescenta-se às informações já previstas no art. 52 do Código de Defesa do Consumidor, um rol de novas informações específicas, visando o esclarecimento do consumidor, inclusive no tocante à onerosidade do crédito e todos os valores cobrados, ao prazo da oferta, que deve ser no mínimo de 2 dias, permitindo a reflexão, e sobre o direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito. A legislação consumerista passa pela reflexão de que é necessário dar ao consumidor todas as informações possíveis, educando-o, para que ele possa fazer uma escolha efetiva do que está contratando. Só por meio da informação correta o consumidor poderá verdadeiramente fazer um juízo de valor.
Da mesma forma, define-se um standard mínimo de informação comum à oferta de crédito, na venda a prazo ou na fatura mensal – em referência provável ao cartão de crédito – exigindo que conste nelas o custo efetivo total, a identificação do agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento.
Ainda em relação à oferta de crédito, publicitária ou não, inclui-se no Código de Defesa do Consumidor a vedação para que, expressa ou implicitamente: a) se indique que a operação de crédito será concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor, conforme disposto no art. 54-C,II; b) oculte ou dificulte a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo, de acordo com o art. 54-C, III; c) seja realizado mediante assédio ou pressão ao consumidor para contratar, principalmente quando se trate de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravadas, ou se a contratação envolver prêmio, segundo o art. 54-C, IV; e d) condicione o atendimento de pretensões do consumidor à renúncia ou desistência de demandas judiciais, pagamento de honorários advocatícios ou depósitos judiciais, de acordo com o art. 54-C, V.
Vale ressaltar que não é à toa que o Código de Defesa do Consumidor trouxe como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo e como um dos Direitos Básicos do Consumidor, o direito à educação. Só por meio dela é possível encontrar o direito à informação, à transparência, à boa-fé, entre outros relacionados à dignidade da pessoa humana. Se o consumidor não é educado o suficiente para contratar, entende-se que houve um ‘abuso de direito’, conforme o art. 187 do Código Civil, que o trata como um ato ilícito, pois o fornecedor, nesta situação, age além do que lhe é permitido por lei e acaba com isso violando direitos do consumidor e o prejudica. Pelo simples fato da prática do ‘abuso de direito’ já gera para o fornecedor a obrigação de indenizar.
Trata-se de promover, já na fase prévia à formação do contrato, o crédito responsável, tomando como critério a avaliação da capacidade de pagamento do consumidor que contrai a dívida, bem como a compreensão sobre as consequências da sua decisão. Igualmente, consagra a proibição do assédio de consumo, com especial proteção aos consumidores com vulnerabilidade agravada. Existem sujeitos que se encontram com várias espécies de vulnerabilidades numa pessoa só, como, por exemplo: consumidor, idoso, pessoa com deficiência e analfabeto.
O art. 54-D, I, trata das condutas exigidas do fornecedor no caso de concessão de crédito, tanto em relação ao dever de informação e esclarecimento do consumidor, assegurando-lhe, inclusive conhecimento sobre a identidade do fornecedor do crédito, conforme art. 54-D, III, e o dever deste em proceder a avaliação das condições subjetivas do consumidor e sua capacidade de endividamento, de acordo com o art. 54-D, II do CDC.
Outra novidade diz respeito às sanções previstas no caso de descumprimento destes deveres, quais sejam: poderão incluir a redução de juros e encargos da dívida ou de qualquer acréscimo ao valor principal e a dilação do prazo de pagamento, mediante decisão judicial, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos que venham a causar para o consumidor. Merece atenção também, o reconhecimento legal da vinculação entre fornecimento de produto ou serviço e o contrato de concessão de crédito que viabilize o pagamento do primeiro. Neste ponto, o art. 54-F procurou exaurir as possibilidade de classificação dispondo que “são conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito: I – recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito; II – oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado”.
A rigor, a conexão contratual aqui se dá em razão da dependência entre os contratos. A existência de um justifica-se pela do outro, daí a coligação. A referência a contrato principal e acessório não é a mais precisa, embora vise reforçar a noção de interdependência. O crédito se outorga para pagar o preço, podendo ser dito, igualmente, que só há a compra e venda de consumo ou a prestação de serviços, porque o contrato de crédito viabilizou os recursos para pagamento pelo consumidor. Em termos conceituais a regra explicita o que já era afirmado por doutrina e jurisprudência.
Os critérios para reconhecimento da conexidade devem ser destacados. Resultam do fato de o próprio fornecedor do produto ou serviço participar da oferta do crédito, na preparação ou conclusão do contrato, ou ainda quando a oferta se realizar no “local da atividade empresarial” do fornecedor do produto ou serviço, ou onde o contrato principal for celebrado. Abrange também os contratos celebrados pela internet. Sua utilidade, resulta, especialmente, da vinculação de ambos os contratos quanto ao seu destino: o exercício do direito de arrependimento em relação a um implica também na resolução do outro; a resolução por inadimplemento do contrato de fornecimento do produto ou serviço, gera a pretensão do consumidor para resolver o relativo à outorga do crédito; assim também a invalidade ou ineficácia do contrato de fornecimento do produto ou serviço afeta o de outorga de crédito, hipótese em que é assegurado ao fornecedor deste último o direito à restituição dos valores entregues ao consumidor, inclusive dos tributos incidentes, conforme art. 54-F, §4º do CDC.
Dos vários aspectos da nova legislação, deve contar com sensível repercussão, em termos práticos, a disciplina do procedimento de repactuação de dívidas por intermédio de conciliação entre o superendividado e seus credores, ou sendo mal sucedido o procedimento de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. O novo capítulo VI-A, introduzido no CDC, organiza um procedimento com tendência a substituir, com méritos, a declaração judicial de insolvência, regulada pelo CPC, em notório desuso. A primeira fase, da conciliação, poderá ser feita judicialmente, quando o consumidor requerer ao juiz a instauração do ‘processo de repactuação de dívidas’, conforme art. 104-A do CDC, ou extrajudicialmente, pelos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de acordo com o art. 104-C. Sendo instaurado processo judicial, prevê-se a realização de audiência de conciliação, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado pelo juízo, com a presença dos credores. Nela o consumidor poderá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo para satisfação da dívida de 5 anos, “preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e formas de pagamento originalmente pactuadas”.
A conciliação extrajudicial tanto pode decorrer de reclamações individuais nos órgãos de defesa do consumidor, mediante a promoção de audiência global de conciliação, chamando todos os demais credores, quanto da atuação destes órgãos, em convênio com instituições credoras e suas associações representativas.
Os acordos que resultem da conciliação administrativa devem incluir a data a partir da qual será providenciada a exclusão do devedor dos bancos de dados de inadimplentes, e o compromisso do consumidor de não agravar sua situação de superendividamento, contraindo novas dívidas.
No caso da conciliação judicial, o não comparecimento injustificado dos credores ou de seus representantes, com poderes para transigir, na audiência de conciliação, importará suspensão de exigibilidade do crédito e interrupção dos encargos da mora, bem como sua preterição para o final na ordem de credores a receberem seus créditos de acordo com o plano de pagamento.
Havendo conciliação com qualquer credor, deverá ser homologada pelo juiz, em decisão na qual conste a descrição do plano de pagamento da dívida, tendo “eficácia de título executivo e força de coisa julgada, de acordo com o art. 104-A, §3º do CDC. Isso quer dizer que os termos da dívida, tal qual previstos no acordo homologado, não deve ser revisado, podendo seus efeitos serem resolvidos apenas no caso de descumprimento, pelo consumidor, pelo consumidor, das obrigações que assume, de abster-se do agravamento da sua situação (art. 104-A, IV). Por outro lado, de modo a evitar o recurso reiterado ao procedimento por parte do consumidor do processo de repactuação de dívidas, há duas distinções relevantes expressas na lei: a) o pedido de repactuação não importará na declaração de insolvência civil: e b) novo pedido somente poderá ser feito após o prazo de 2 anos contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, ainda que se admita, conforme o caso, a possibilidade de eventual repactuação, de acordo com o art. 104-A, §5º.
A lei, ao dispor sobre o plano de pagamento das dívidas que resulta da conciliação, define que nele constarão medidas de dilação de prazo, redução de encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor (por exemplo juros), entre outras destinadas a facilitar o adimplemento. Igualmente, deverá dispor sobre a suspensão ou extinção das ações judiciais em curso que digam respeito às dívidas, o que notadamente visa abranger as pretensões do credor, assim como a data de exclusão dos bancos de dados restritivos de crédito, e as obrigações que o consumidor assume visando não agravar sua situação, conforme art. 104-A, §4º do CDC. Em relação ao plano judicial compulsório que terá lugar se frustrada a conciliação, não há previsão específica, nada impedindo que se sirva dos mesmos elementos. A ausência de conciliação com um ou mais credores dá causa a que o consumidor possa requerer ao juiz a instauração de ‘processo de revisão das dívidas’ cujo objeto abrange a revisão, integração e repactuação das dívidas remanescentes (que não tenham sido objeto de acordo na fase anterior). Para tanto, citará os credores cujos créditos não tenham sido objeto de acordo. Após a citação, os credores terão o prazo de 15 dias para recusar aderir ao plano ou renegociar, apresentando documentos, como, por exemplo, poderão contestar as informações prestadas pelo consumidor sobre a dívida.
A imposição do plano compulsório de pagamento tanto poderá ser feita pelo juiz diretamente, quanto por administrador que nomeie, sem ônus para as partes – hipótese que remete à dúvida sobre o perfil e origem do administrador e sua eventual remuneração. Se nomeado administrador, este terá 30 dias, após cumpridas as diligências necessárias, para apresentar o respectivo plano. Este deverá assegurar, no mínimo, o valor da dívida, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, com o pagamento da primeira parcela em no máximo 180 dias contados da sua homologação, e a quitação em até 5 anos, de acordo com o art. 104-B, §4º do CDC. É precisamente desta providência, que viabiliza o recebimento de, ao menos, parte substancial da dívida pelos credores, de onde resulta a identificação de uma ‘cultura de pagamento da dívida’ pela nova lei, ao invés de sua prorrogação indefinida no tempo.
A efetiva implementação da lei, que em relação, especialmente, ao novo procedimento de conciliação e tratamento do superendividamento, depende da sensibilidade e atuação do Poder Judiciário e demais instituições do sistema de justiça, assim como os integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Não exclui, igualmente, fornecedores de crédito responsável que compreendam o caráter estrutural da crise de pagamento que conduz ao superendividamento e tenham presente a dimensão social de sua atuação. O papel do juristas, de um modo geral, exercerão a partir de agora, na divulgação e interpretação das novas normas do CDC, desenvolvendo seu sentido e alcance, em face das exigências de sua aplicação na prática.
A Lei 14.181/2021 foi publicada com cinco vetos. Um dos pontos vetados proibia propagandas de oferta de crédito ao consumidor, do tipo ‘sem juros’, ‘sem acréscimo’ ou ‘juros zero’. Neste tipo de operação, os juros costumam ser embutidos nas prestações. Também foi vetado o trecho que limitava os níveis da margem consignável (o total que pode ser usado para pagar as parcelas), que seriam de 5% do salário líquido para pagar dívidas com cartão de crédito e 30% para outros empréstimos consignados.
O art. 2º da Lei 14.181/2021 acresce o §3º do art. 96 do Estatuto do Idoso: “não constitui crime a negativa do crédito motivada por superendividamento do Idoso”. Este dispositivo veio como forma de afastar o receio do mercado em negar crédito a idosos sem capacidade financeira suficiente e com o objetivo deixar claro a ausência de crime nessa hipótese.
O art. 3º e o art. 5° da Lei 14.181/2021 trata de vigência e retroatividade. O art. 3º determina que “a validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor desta lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta lei subordinam-se aos seus preceitos”. Isso quer dizer que aspectos referentes à validade de um contrato de concessão de crédito obedecerá à lei do tempo da sua celebração, mas no que se refere a executoriedade (eficácia) do contrato, normas da nova lei poderão ser aplicadas, a exemplo daquelas constantes no art. 54-F que trata da coligação dos contratos. Acrescente-se que as normas referentes à conciliação no superendividamento (Art. 104-A a 104-C), por terem natureza processual têm aplicada imediata.
Diante do exposto faz-se necessário uma reflexão acerca das vulnerabilidades que o consumidor se encontra diante da posição economicamente mais forte do fornecedor. Entre outros princípios norteadores da relação consumerista, incluindo os constitucionais aplicáveis, o da informação adequada e o da educação são muito relevantes para que tenhamos um futuro em que a dignidade da pessoa humana seja sempre respeitada. Qualquer relação jurídica tem a função de trazer sempre o equilíbrio. O consumidor de boa-fé que por motivos sérios não conseguiu cumprir com as suas obrigações contratuais, deve ter o direito de recomeçar.
Por: Cláudia Feres